Meu roteiro planejado para o Uruguai foi Punta del Este, Montevidéu, Colônia de Sacramento, uma pequena cidade centenária, disputada por portugueses e espanhóis e de lá pegaria um ferryboat e três horas depois pretendia chegar a Buenos Aires, de lá para Mendoza, atravessaria a cordilheira dos Andes em direção à Santiago do Chile.
No dia seguinte, após o café, fui ver a moto e segui as orientações necessárias para àqueles que estão na estrada: lubrificar a corrente a cada parada de abastecimento e sempre após a chuva. Ajuda muito na vida útil da catraca, corrente e peão. Não use graxa e sim um produto liquido tipo aerosol, evita que a terra grude na corrente (Chain Lube MOTUL) ou equivalente.
Preparei o meu GPS da garmim, a prova d´áqua, especialmente para motocicletas (ZUMO 390 LM) ligado diretamente na bateria. É fácil e carrega o GPS enquanto está fixada na base.
Peguei a estrada e algum tempo depois estava em Curral Alto, rodovia RS471, a 120 km da fronteira. Andei mais um pouco e parei na estrada que corta Santa Vitória do Palmar para um café e refletir sobre a viagem e a vida.
Havia passado por uma reserva nacional. Local onde a única agressão à natureza é a estrada que a corta. Pude ver muitas carcaças de animais atropelados, alguns de grande porte. Sem a intervenção humana posso dizer que a crueldade da realidade que se apresentava chega a ser bela. E porquê bela? perguntariam. Na parte inundada da região pude ver muitos animais vivendo com água até a cintura e muitos necessitando de resgate, pensei. O vencedor naquele ambiente não é o mais forte e sim àquele que se adapta às mudanças. Darwin disse isso . O pássaro, o lagarto, a cobra já pertence ao meio aquático ou pode conviver com ele facilmente mas o boi, búfalo ou cavalo, se não tiver força e disposição para encontrar um lugar para se manter vivo, sucumbirá. A beleza está em perceber que assim como eles, nós vivemos num pântano e se não transformarmos ou nos adaptarmos à realidade, morreremos. O café já tinha acabado a algum tempo e eu divagava esquecendo de me manter em movimento.
Atravessar a fronteira é algo que temos que admitir, é tenso. Primeiro precisa passar na Alfândega, depois na Aduana. E porquê isso tudo? A primeira é para você passar e a segunda o veículo. Os documentos tem que estar em dia, os seus e os da motocicleta. Importante, mas muito importante, guardar o documentos que te dão na entrada pois na saída, se não tiver o registro da entrada no país ou o registro de propriedade da moto ou equivalente, estará em sérios problemas. Ao retornar da Bolívia para o Chile, passei por San Pedro de Atacama como não peguei o carimbo de entrada, ao sair do país perdi quase um dia até vasculhar no sistema da alfândega e aduana para certificar que a moto não era roubada e eu tinha entrado no país legalmente.
Andava eu pela estrada com esses pensamentos quando me deparei com a placa indicando o limite dos dois países. Duvido daqueles que ficam indiferentes em um momento desses. Mesmo estando todo legalizado e cumprindo todas as exigências, a zona de fronteira é onde tudo acontece. De bom e de ruim. É onde os extremos se encontram. Muitos criando dificuldades para manter o negócio, interesses inimagináveis precisam passar por ali e o mercado desta localidade se inverte, o coadjuvante em outra região é protagonista ali.
Acredite, do lado brasileiro eu passei direto, não precisei fazer nada. Será que é porque está logo na saída da reserva nacional? Refleti. Três quilômetros após deparei-me com a aduana uruguaia.
Apresentei meu passaporte(não precisa, basta a identidade, mas seguro morreu de velho), a carta verde (seguro obrigatório para o MERCOSUL. Ligue para a seguradora que eles sabem explicar ). Eles carimbaram a minha entrada no país no passaporte, registraram a entrada da moto (apresentei a nota fiscal de compra sendo eu o proprietário). E seguí meu caminho pensando o quanto era paranóico imaginando fantasmas e dragões onde só havia paraíso, mas o pior estava por vir.

Cheguei em Punta del Este no final da tarde. A cidade estava completamente vazia e fazia muito frio, creio por estar fora de temporada. Imaginem uma cidade balneária de alto luxo, igual a muitas que temos na orla brasileira. Ela é o sonho de consumo dos uruguaios bem sucedidos e estrangeiros endinheirados. Agora pensem em uma cidade fantasma ou que recebeu um aviso de furacão, tisuname ou invasão de alienígenas. Pois bem, anoiteceu e procurava hotel barato . Segui em direção a orla e me imaginei em Copacabana ou Ipanema com uma diferença: não tinha uma alma viva. Olhava para os grandes prédios luxuosos e nenhuma luz acesa. Os quiosques da praia vazios e abandonados. Só tinha eu percorrendo a praia mais famosa do Uruguai. Sem carro, moto, uma pessoa sequer. Comecei a pensar que o frio intenso devia ser o motivo do abandono. Imaginei-me naqueles filmes de pós guerra nuclear sem que os prédios estivessem destruídos. É arrepiante.
Com frio, só. solitário e após me certificar que os cinco hotéis mais baratos que procurei tinham falido, tomei coragem de entrar em um hotel mediano e perguntar a diária. Os hotéis são muito caros, cobram em dólar, algo em torno de US$130,00, mas a resposta congelou minha alma. US$ 300,00, ou seja, R$ 1.000,00 para dormir. Soube que na alta estação um sandwich chega a custar US$ 50,00. Melhor seria dormir na rua ou acampar mas poderia adoecer com uma pneumonia. Já se aproximava da meia-noite e eu andava com a reserva de gasolina, paciência e esperança. Parei em mais um hotel e recebi outro preço absurdo. Pensei que o inverno tinha aumentado os preços, se ficasse na rua congelaria, melhor seria procurar abrigo a qualquer preço.
Acreditando ter chegado no limite do cansaço e autocontrole retornei para a moto estacionada na frente do hotel onde fui fazer a consulta de preço. Montei, girei a chave e o motor foi acionado e aguardei meu grande e único amigo GPS dar o ar da graça. Fiquei chocado quando constatei que o meu GPS amigo não ligava. Pensei em gritar mas por ser contra-producente me mantive em silêncio e tentei entender o que havia acontecido. Apertei todos os botões, liguei, desliguei tudo e nada. Naquele instante o peso da moto ficou mais leve e o meu orgulho também. Saquei meu GPS reserva, àquele que levo quando ando no meio do mato e que também serve para andar no barco e automóvel e liguei. Por ser pequeno tive que andar com ele na mão pois na moto dificultava a visão.
Já iniciava a madrugada e tinha me afastado da área nobre da cidade e a arquitetura da região me indicava que estava na perifería da perifería. Sinistro. Resolvi voltar e pagar qualquer preço pois se fosse roubado ou morto seria pior.
Já no final da orla lembrei-me da adaptação dos sobreviventes e abandonei o GPS e partí para a ignorância. Os poucos bares abertos me davam algumas dicas mas o prejuízo ia abalar minhas finanças no final da viagem. Refleti que estava perguntando para raposas onde era o galinheiro. Mudei a tática e perguntei a duas senhorinhas que entravam no prédio onde moravam. Indicaram o hotel Amsterdã cujo preço era US$75,00. Maravilha. Partí para lá. Não achei. Resolvi perguntar a dois operários que passavam longe de mim. Era minha última tentativa. Eles apontaram para a esquina e lá estava o hotel. O cansaço, a fome, sede, desânimo, solidão, etc., havia me deixado leso. Não conseguia pensar direito. No hotel só tinha internet no saguão e aproveitei para falar com a família. Eles já estavam preocupados. Subi para o quarto, tomei um banho de escalda pé, me enrolei nas cobertas e dormi até quase a hora do checkout.
Punta del Este
Alguém pode perguntar porquê tanto sofrimento para andar de motocicleta. Dizem que a paixão não se explica, vive-se. A paixão é falta, ausência que quando preenchida extingue-se. A motocicleta, além de paixão é uma forma de ver a vida. Quando viajas de carro é como se assistisse a um filme, agora de moto, você é protagonista, você é interlocutor e vive a estória e não assiste. Pergunte ao artista o porquê da arte e acredito que ele vai responder que é a forma mais eloquente de reproduzir a cruel realidade. Andar em uma motocicleta cortando a natureza e cruzando com as milhões de vidas é a arte em movimento, é sentir a vida através do ronco do motor, é a plenitude do imponderável, a totalidade do que não pode ser medido. A luz chega, ilumina, aquece e você sorri e vai em frente. Assim é a motocicleta, o eterno retorno na concepção de Nietzsche.
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Montevidéu |
179 km, ou 2h e16 minutos de estrada cheguei a Montevidéu. Cidade boa de se curtir o frio com um bom chocolate nos bares ou cafés, passear pela Cidade Velha ou ou ir ao Mercado del Puerto provar uma boa comida uruguaia.
Pensei em ir às estações de águas de Salto e Paysandu que fica a nordeste, mas o relax me deixaria sem condições de enfrentar o desafio que me esperava. Resolvi passar o dia aproveitando a cidade e no dia seguinte seguiria meu rumo.
De volta para a estrada desfrutei de um passeio agradável. Aproveitei o sol, o frio, a chuva e a estrada em boas condições.
Colônia de Sacramento, a pequena jóia do Uruguai, separada da Argentina pelo rio da Prata, talvez seja a cidade mais interessante do país. Ruas de pedra, casas seculares construídas na época da colonização portuguesa faz do Uruguai um país pequeno, hospitaleiro e com muito a ser descoberto.
Neste momento alguém pode perguntar: porquê não fez reserva no hotel? e a resposta é que é impossível saber quando vai chegar a algum lugar no dia e hora previsto. Se chover, mudar de idéia ou simplesmente perder a vontade de seguir naquela direção, o problema que se forma é enorme, além do que a reserva de hotel te limita, oprime. O que você planejou se impõe ao pensamento que a realidade está te oferecendo. Se resolvesse ir as estações de água comprometeria minha reserva no hotel. Gosto da idéia de mudar de idéia a qualquer instante. Não foram poucas as vezes que ajustei o GPS para uma rota à noite, ao acordar, reprogramei e depois do café, ao sair tomei outra direção. Em outras palavras o poder de decisão sobre o seu destino é algo que só entenderá quem se predispor enfrentar essas contradições. Mas isso tem o preço de eventualmente dormir na rua ou se encontrar em situações inusitadas.
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Colônia de Sacramento |
No dia seguinte, acordei cedo, tomei café, preparei a moto e me dirigi à estação das barcas que ficava a uns 300 metros do hotel. No dia anterior, a primeira providência te tomei ao chegar na cidade foi comprar a passagem de barco pois deveria ficar na cidade até o dia do embarque.
Aquele local é o ponto de passagem de um país para outro e os trâmites de alfândega e aduana são idênticos aos aeroportos, por isso cheguei com duas horas de antecedência, coloquei a moto junto com os outros automóveis e me dirigi à alfândega. Fiz todo o procedimento de embarque e algum tempo depois estava no meio do rio da Prata com destino à Buenos Aires.
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