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(1550 km) Caminho percorrido entre Buenos Aires , passando por Mendoza, e Santiago do Chile. |
Ao partir de Colônia de Sacramento, no Uruguai embarquei no ferryboat com destino â Buenos Aires, impressionou-me o luxo, conforto e segurança. A moto, além de bem posicionada ficou presa com fitas de segurança, o que me deixou tranquilo quanto a uma possível queda ou atingir outro veículo em caso de solavanco das ondas.

Após deixar a motocicleta em segurança, subi a escadaria que levava às acomodações dos passageiros.
A travessia leva 1h e 30 minutos. Paguei 150 reais pela passagem e 76 reais pelo transporte da motocicleta. Tudo isso com direito a tv, free shopping e bar. O tempo passa rápido e quando se percebe que está em um barco e vai olhar a escotilha, já está chegando.
Estava entusiasmado e orgulhoso pelas conquistas realizadas até aquele momento. Não havia me machucado, a moto estava em perfeitas condições, a moral elevadíssima a tal ponto que me permiti tomar uma cerveja na noite anterior.

Desci no porto reformado, perto da sede do governo argentino, a Casa Rosada. Andei pelo centro, fotografei os pontos culturais importantes e como ameaçava uma chuva, resolvi deixar Buenos Aires para outro momento e peguei a estrada.

Pilotar uma moto é como nadar um ou dois quilômetros em mar aberto, esporte que gosto muito e pratico sempre que posso. É um mantra que vai se desenvolvendo na medida que seu cérebro passa a controlar as variáveis que te cercam. Ele entrega ao corpo as repetições e passa à um estágio de reflexão, onde a filosofia, sentidos e sentimentos povoam seu íntimo.
Naquele momento comecei por adequar, ajustar em minha mente a bagagem que levava para enfrentar o tempo de viagem e percorrer 22.000 km por terra sem saber o tipo de estrada que encontraria na fronteira da Venezuela com o Brasil pois não tinha indicativo de estrada no mapa e 5 dias dentro de um barco através da floresta amazônica, clima que ia do menos muitos graus no Aconcágua à sucursal do inferno na região do entorno da Venezuela com Roraima, alimentação e seus efeitos no meu organismo, hospedagem, locais a visitar, trânsito local - cada local tem sua particularidade - manutenção da moto, corrupção policial na fronteira, erros de direção, etc.. Pensei nos amigos que haviam pedido para vir comigo nesta viagem e a dificultade que tive para explicar que a viagem era mais introspectiva que externa, turística. Eu e a moto éramos o cavalo e a entidade que me possuia precisava de toda a liberdade para enfrentar o mistério, o desconhecido, o nada, o detalhe, o inesperado, a realidade nua e crua. Não cabia passageiros, só tripulante, e neste caso não poderia por em risco mais ninguém além de mim. As variáveis eram muitas e complexas.
Parei em Baradero para um café. Faltavam mais de 1000 km para chegar até Mendoza Voltei para a estrada na certeza de cumprir a tarefa do dia:tentar fazer mais 400 km.Se não tivesse inconveniente algum, chegaria ao Chile no dia seguinte, à tarde.
Andei mais 359 km sem um posto de gasolina na estrada. Minha motocicleta tem um tanque que comporta uma autonomia de 400 km. Eventualmente o GPS indicava que me aproximava de um, mas ao chegar ao local indicado, só mato e estrada. Muito estranho. Há algum tempo a luz de reserva de gasolina no painel da moto havia acendido e começava a me preocupar. O próximo posto estava à 19 km. Havia reduzído a velocidade para 80 por hora para economizar gasolina e garantir o abastecimento antes de cair a noite. Coração na mão, pensei: vai que o posto não esteja lá quando chegar.

Assim resolví a questão. Veja só: estava em uma rodovia que tinha posto a vontade no acostamento. Do nada, entrei em uma autopista e só fui perceber que não tinha posto quando o tanque de gasolina entrou na reserva. Isso quase me ferrou. Saí da rodovia, entrei na cidade de Bell Ville, abastecí e fui procurar um hotel para descansar até o dia seguinte.
Refleti sobre o fato e cheguei as seguintes conclusões: normalmente, calculo a distância que vou percorrerei até o destino e mantenho o consumo de gasolina dentro da autonomia da motocicleta. Ao sair da aduana de Buenos Aires, programei o GPS para me levar à Mendoza, cidade vizinha às cordilheiras dos andes. Você dorme e descansa antes de entrar na estrada que leva às cordilheiras e o Aconcágua. Era só atravessar e pronto,estava em outro país. O GPS te dá quatro opções de rota. Escolhi a mais curta, então mudei a rota para a direção do centro de Buenos Aires para passear e conhecer a cidade. Após o passeio, reprogramei passando por Córdoba, aumentando a distância em 70km. Foi aí que meu cálculo de gasolina foi para o buraco.
A maior angústia foi ver a noite chegando com um frio desesperador, a luz da reserva acesa a meia hora, com a velocidade reduzida de 130km/h para 80km/h para economizar gasolina, em uma estrada que tem absolutamente nada. Quilômetros e quilômetros em reta vendo só o verde dos campos cultivados ou o cinza da região árida. Devo ter andado mais de quatro horas nessa estrada sem ver ninguém. Um pequeno detalhe que te escapa e você se arrebenta.
Passei, então, a desenvolver o procedimento de abastecer a moto sempre que o tanque chegasse a metade. Parava mais vezes mas garantia não ser surpreendido por uma falta de gasolina motivado por um cálculo errado de distância ou erro de direção e chegar a sabe-se lá aonde. Isso veio me acontecer no deserto do Chile quando ao sair de San Pedro de Atacama, meu GPS havia pifado e perguntei aos policiais da alfândega como fazia para chegar ao salar do Uyuni, na Bolívia. Eles falaram para virar a esquerda e andar 70km eu entendi para andar 70km e virar a esquerda. Ao perceber o erro estava no meio do deserto, a estrada asfaltada havia acabado e a coisa complicou. Mas isso eu conto quando chegar no Chile.
No dia seguinte me despedi de Bell Ville e partí para Mendoza. Decidí ganhar tempo evitando os 70km que me obrigava a passar por Córdoba. Economisei 40km mas não pude mais andar a 130km/h e passei por pequenas cidades, ou seja, engarrafamentos, quebra-molas, sinais demorados mas com a vantagem de apreciar os costumes argentinos em cada pueblo que passei.
Saía eu de uma dessas cidades, Villa Maria para ser mais exato, quando entrei em um trecho longo que acompanhava uma ferrovia. Parei em um sinal no meio de um lugar deserto, tendo só o muro da ferrovia ladeando a estrada. Não tinha nada nem ninguém. O sinal demorou longos 30 segundos, uma eternidade. Pensei em avançar mas refleti: porque um sinal tão demorado neste deserto e fim de mundo. Subúrbio de uma pequeníssima cidade.
Estava com meus pensamentos, intrigado, quando o sinal abriu. Segui em frente. 10 metros à frente, outro sinal e mais 30 segundos. Faça um exercício. Tente passar da sua sala de estar para cozinha mas espere 30 segundos na porta que divide os ambientes. É doloroso. Isso é um absurdo, vou avançar, pensei, mas a pergunta que fiz no primeiro sinal ainda estava sem resposta na minha cabeça: porque um sinal tão demorado neste fim de mundo?
Decidî não avançar e quando a luz verde apareceu, sorri e acelerei. Duzentos metros à frente, em uma meia curva e um carro policial meio escondido atrás de uma árvore fazia uma barreira policial. Isto é: uma viatura e dois policiais. Mandaram parar, pediu os documentos e perguntou: vindo de onde, indo pra onde? Isso me lembrou atè aquela mùsica do Evandro Mesquita.
Respondì as perguntas e esperei o bote. O policial falou que eu havia avançado pela direita, visto que tinha respeitado os dois sinais de trânsito e com isso anulei o melhor argumento dele. Preocupado em não irritá-lo, calmamente comecei a falar. Como poderia avançar pela direita em uma pista de mão e contra-mão onde o acostamento é um muro da ferrovia e com o agravante de ter só eu na estrada. Porquê eu avançaria pela direita em uma pista deserta?
Irritado, começou a falar rápido. Respondí que daquela forma não conseguiria entendê-lo. Piorou, falou meia dúzia de palavras, nenhum palavrão que eu conhecia foi dito. Isso não quer dizer que ele não tenha dito. Mandou eu ter cuidado e seguir viagem.
Nesse instante a resposta à pergunta que me fiz no primeiro sinal encaixou-se. Aquilo era um esquema para multar por avanço de sinal. Como não avancei, ele tentou algo para ver se colava. Dessa vez passei ileso. Outras estórias assemelhadas viriam no decorrer da viagem.


Cansado e com fome, parei para descansar. Após o almoço, quando lubrificava a corrente para voltar para a estrada, chegaram 3 pajeros com 4 casais e uma criança. Me cercaram e queriam saber tudo da viagem. Relatei os meus planos e nesse momento chegou um cachorro vira-lata. Sentou-se na minha frente e me deu a pata. O garotinho, que tinha medo de cachorro se aproximoou e tomando coragem se inclinou para o animal mas foi contido pela mãe. Expliquei que devia fazer carinho com a mão de baixo para cima para que ele cheirasse e pensasse que fosse alimentá-lo e não de cima para baixo, dando a impressão de agressão. Assim foi feito e o garoto saiu feliz da vida com o acontecimento.
Infelizmente o cachorro não ganhou nada porque já estava de saída e não tinha mais o que oferecer. Isso doeu na minha consciência porque me vejo tentando a penitência contanto a estória.
O castigo não tardou a acontecer. Na primeira ultrapassagem que fiz, o acelerador colou no máximo e não reduzia. Fiquei maluco. O motor gritava. A rotação foi ao máximo. O ponteiro do mostrador atingiu o pico da área vermelha indicando perigo.
Desesperado, mas no controle, apertei a embreagem e sem o engate da marcha o motor enlouqueceu. Pensei: vai explodir agora. Consegui parar no acostamento e assustado, desliguei o motor. E eu que pensei que a altitude das cordilheiras ia alterar minha pressão arterial. Aquela situação quase me fez ter um infarto.
O susto me jogou na estratosfera da tensão. Imagina o pedal do acelerador colar no fundo e o motor não parar de rodar com toda a intensidade e o marcador de rotação bater no limite da área vermelha de perigo de explosão, até, e as luzes de alerta piscando. Tudo isso em uma ultrapassagem.
Ao desligar o motor, o meu coração desacelerou e aguardei a adrenalina baixar. Pensei: a viagem termina agora. No meio da estrada, sózinho, como vou voltar para casa? como vou levar a moto de volta?
Completamente decepcionado, arrasado, impotente, pasmo, comecei a xingar a moto. Motocicleta de merda, Só tem nome mas não vale nada. Sentei no asfalto e fiquei ali, refletindo sobre "mis ideas de mierda" quando percebi que lamentar não ajudaria em nada. Levantei, montei na moto, respirei fundo e girei a chave. O motor parecia um gatinho. Ronronava macio e tranquilo. Passei a andar a 60km/h imaginando encontrar uma oficina mecânica para me socorrer.
Minutos antes deste ocorrido estava eu ultrapassando os carros com segurança a toda velocidade, confiante, controlando os ítens de viagem enquanto dirigia, ou seja, distância, consumo, tempo, giro do motor, opções de rota, irregularidades na estrada, sinalizações rodoviárias, etc., e meia hora depois passei a andar a 60km/h e era ultrapassado por eles facilmente. Vou assim até chegar na próxima cidade, nesse vai e vem, balangando pela estrada.
Muitos pássaros vivem a beira da estrada e voam à sua passagem. É muito bonito de se ver. Eles são muitos e lindos. Têm uns maiores que gostam de passar na sua frente. Até para te desafiar, acho. Bem, um deles mudou de idéia na última hora e deu uma cabeçada no meu capacete. Não voltei para ver como ele estava pois nada poderia fazer e já tinha um problema bem complexo para resolver. Além do mais, não tinha nem caixinha de sapato para enterrar, se fosse o caso. Preferí pensar que ele só atordoou e foi-se embora. Depois desse aprendi e evitei cabecear uns dezoitos.
Entusiasmei-me e arrisquei uma ultrapassagem colando o punho do acelerador. O desespero voltou com a repetição do trauma sofrido momentos antes. Imediatamente parei e desliguei o motor. Aguardei por quinze minutos, religuei e dessa vez fui quase engatinhando até o primeiro posto de gasolina que encontrei.
No posto não tinha mecânico nem frentista. Sem saber o que fazer, comecei a refletir sobre as possibilidades que poderiam ter provocado aquele problema. A moto era nova, tinha comprado 1 mês antes da viagem. Os únicos fatores que influenciaram no funcionamento do motor foram a chuva, o frio e a poeira. O GPS e a máquina fotográfica tinham pifado creio eu por causa do frio. Nesse momento, após analizar todos os detalhes, reduzi minhas suspeitas a dois pontos. Ou tinha um problema enorme com o motor e ai minha viagem tinha terminado alí e não poderia fazer nada além de colocar em cima de um caminhão e levar para Mendoza e lá consertar ou o problema era simples e só tinha que descobrir aonde.
Pergunto: com esses dados consegue matar a charada? não consegue? Pois bem. Lembrei-me da conversa da manutenção da corrente que necessitava de lubricação constante e extendí o raciocínio aos outros mecanismos e refletí. Talvez o frio, chuva e a poeira poderiam ter se entranhado no interior da manete do acelerador. Seria o único problema que poderia resolver ali, naquela hora.
Andei até a lojinha de venda de óleo do posto e perguntei se tinha WD40. Com ela na mão comecei a borrifar todas as partes mecânicas da moto, principalmente a parte interna da manete de aceleração. Coloquei a ponta do canudinho que acompanha a lata no espaço entre a manete e os controles esquerdos do guidon da moto e lambuzei a parte interna da manete. Girei a manete até o final e coloquei mais wd40. Com cuidado para não afogar a moto, repeti esse procedimento algumas vezes.
Guardei a lata, liguei a moto e tudo bem. Comecei a andar de vagar com o seguinte raciocínio: vou acelerar até 100km/h e me manter assim até chegar em uma cidade grande o suficiente para verificar o problema.

Moral da estória: até uma super máquina precisa de carinho e atenção.

Nove de setembro de 2014, ainda em dúvida quanto ao ajuste dos fusos horários, chuviscando e com um friozinho gostoso, ia eu pela estrada, devagar porque a medida que vai subindo as cordilheiras e a velocidade da moto aumentando, o calor vai diminuindo e com o ar é rarefeito, começava a sentir saudades do verão brasileiro. Não sabia se veria neve. mas gostaria de fazer um boneco com ela.

A manhã foi tranquila e à tarde me preparei para enfrentar a pior parte, a que levaria ao ponto mais alto da cordilheira. Passei por um povoado turistico com áreas de camping e pousadas. Tinha apenas uma rua principal. Já na saida, deparei-me com uma barreira de carros do exército e uma fila de carros no acostamento. Aproximei-me do militar que controlava o acesso à cordilheira e perguntei sobre o porquê do bloqueio. A resposta não me convenceu. Uma tempestade de neve se aproximava e ninguém poderia passar. Indignado retornei e procurei um abrigo num camping próximo. Perguntei a senhora que me atendeu sobre o ocorrido e quanto tempo o bloqueio duraria. A resposta me indignou. Pode ser meia hora ou um mês. Dei meia volta e retornei ao bloqueio. Se pode durar meia hora eu vou apostar na abertura da estrada para daqui a duas horas no máximo. Ao chegar no bloqueio, os carros não estavam mais lá. Pensei: ou já foram montanha acima ou retornaram para ao vilarejo. Encostei a moto e não ví mais o soldado na pista. Ele estava em uma espécie de guarita. Protegido de que? pensei. Não demorou muito para saber a resposta. Uma tempestade de vento frio úmido com areia me deu uma lambida que foi do calcanhar ao cerebelo.
Minha prepotência e arrogância de achar que superava qualquer obstáculo finalmente entendeu a realidade em que me encontrava e humildemente retornei pensando se haveria lugar para dormir visto que todos já estavam alojados e aquecidos.
Aluguei uma cabana em um camping por 40 dólares e conversando com a senhora que me atendeu ela disse que tempos atrás, um turista rompeu a barreira e foi fotografar as cordilheiras e foi jogado a 30 metros de distância da estrada pelos ventos da tempestade.

Começou a escurecer e achei melhor me abrigar e começar a fazer a comida. Retirei os alforjes e a mochila da moto, separei o material para dormir e o de fazer comida. De repente a energia acabou e pela primera vez, durante a viagem, me senti desamparado. Sempre tinha algo para fazer: pilotando, conversando, planejando. Isso tudo me integrava a algo. Agora não, o quadro depressivo estava completo. Só, no escuro, com frio e com fome me fez pensar no que realmente é importante na vida.
Tentei acender o gas do fogão para fazer um miojo e um mate quente. Percebi uma luz cruzar a sala e fui até a janela para ver quem que era. Era o farol daa Hilux dos Hare Krishnas. Eles haviam ocupado a cabana ao lado e dela saíu o que me pareceu ser o lider espiritual deles pois havia uma liturgia, um cerimonial no relacionamento entre eles. Saltou da pick up, deu alguns passos e do nada levantou a cabeça, me olhou fixamente e me cumprimentou. Surpreso fiquei pois pensava que não tinha sido percebido com aquela escuridão toda me cercando, respondi igualmente com a cabeça, baixei a cortina e concluí que a claridade da chama do fogão tinha me denunciado.
Lamentei não poder ir falar com eles pois me pareceu estarem em uma viagem com muita discrição. O lider não saiu do carro quando fizeram o registro na entrada do camping e ao chegar na cabana, todos, menos ele, sairam, entraram na cabana e só após estar tudo em ordem é que ele saiu do carro para entrar. Calculei que diante de tanto recato, não seria delicado ir lá sem ser convidado.
Naquela noite mal consegui dormir. O frio era intenso e meu irmão havia me dito que se eu me abrigasse do frio em ambiente excessivamente hermético, a chama das velas poderia consumir o oxigêncio e me asfixiar. Para minha felicidade a luz retornou e apaguei tudo. Brindei aquele momento com uns goles de um licor espanhol feito de 43 ervas e por isso é conhecido pelo número. Dormí aquecido com um meião, uma calça e camisa conhecidos como segunda pele, uma calça jeans, um pulover, luvas e para aquecer o coração, duas doses do bendito digestivo.
Como disse, a subida é cascalho puro e só passa um carro. Refleti sobre a sorte de ter um dia de sol e a barreira ter sido desfeita para que o trânsito voltasse a fluir. Andei 78km apenas e com cuidado pois quando apareceu um carro na contramão, tive que desviar indo em direção ao abismo. Subi em primeira e segunda marcha e desci no máximo em terceira. Na marcha lenta, a moto dá uma guinada desproporcional quando se acelera e isso aumenta o risco de queda. Tem que ter sangue frio pois quase não tem trânsito e de repente aparece um carro ou caminhão na contramão e naquela altitude, a tensão é constante.
Passei por uma placa que dizia - obrigatório o uso de correntes nas rodas -. Pensei: que corrente, o que é isso, não faço a menor idéia. A estrada de cascalho que me obrigava a exibir todas as habilidades de equilibrista, com uma largura suficiente para um carro apenas me fez imaginar como seria minha travessia durante uma tempestade de neve e eu necessitasse desse recurso para evitar problemas maiores, estaria em sérios apuros.
A paisagem era repleta de desfiladeiros cercados por um deserto. Assusta. Quase caí porque a terra e as pedras te dão rasteiras o tempo todo. Fui a 2.814 metros de altitude, não senti nada de anormal comigo, daí comecei a descer. Voltei a um trecho de asfalto meio muquirana pois estava cheio de falhas. Pensei: estou tranquilo. Agora é direto no asfalto para Santiago do Chile.
Em um determinado momento vi a neve, de longe, fotografei, filmei e caminhei até ela. Não pude fazer um boneco mas me encantei com a paisagem toda branca e um frio que passou despercebido porque estava focado no deleite da visão.

Percebí que as luvas que levei eram impróprias para. Era resistente mas tinha furos na lateral dos dedos para facilitar a transpiração. Meus dedos começaram a congelar, literalmente. Não podia largar a manete do acelerador muito menos os controles de embreagem e freio da mão esquerda. Neste momento, o rapaz da concessionária da BMW que me vendeu a motocicleta povoou meus pensamentos. Ele falou que entre as facilidades que a moto apresentava, o aquecedor de manetes era o que ele mais gostava. Retruquei dizendo que vivíamos em um país tropical e que jamais usaria aquilo.

Nunca diga jamais. meus dedos doíam de frio e não podia esfregar as mãos nem cerrar o punho para proteger os dedos. Sabia que o aquecedor de manetes tinha dois estágios, o primeiro esquentava e o segundo queimava a mão. Claro que no sol carioca isso era verdade mas alí era o bálsamo necessário para seguir viagem.
Minha filha, quando voltou de uma viagem, me presenteou com um sapinho azul. Pensei em trazê-lo comigo viagem na para ajudar a manter o controle durante as situações difíceis, matar a saudade da família nos solitários momentos e bater um papo com alguém de vez em quando pois são dois meses viajando sózinho e chega uma hora que um interlocutor é necessário até para fazer o papel de sua consciência. Ficava do lado do GPS e frequentemente, ao olhar para ele, minha potência de agir aumentava consideravelmente. Espinosa que o diga.

Quilômetros se passaram e do nada, no meio daquela neve toda, encontrei um congestionamento de vários carros e carretas. Do lado esquerdo da pista era para carros e na direita para carretas. Fui andando ora em uma fila e ora em outra até que cheguei no motivo do congestionamento. Era a aduana. Divisa entre os dois países. Sim, lá em cima das montanhas no meio de toda aquela neve, encontrei um mafuá inimaginável.
Passei algumas horas até liberar a mim e a moto. Transtorno que não desejo a ninguém. Imagino se alguém esquece um documento ou se é motivo de suspeita pelos policiais. Só não é motivo para desistir porque seguir em frente é mais fácil que retornar.
Tudo certo, de volta para a estrada, comecei a descer. Curvas sinuosíssimas, serpentinosas. As carretas avançavam na contra-mão para fazer a curva. Quando a temperatura atingiu 6 graus, a alegria tomou conta do meu corpo. Mais abaixo, quando já me aproximava do nível do mar, a temperatura chegou a 11 graus. Meu espírito ficou pleno de felicidade. Não acreditei que me alegraria tanto com tão pouco.
Pouco tempo depois chegaria a Santiago do Chile.
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